sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

 

A Vergonha da Bandeira

É noite. Sobe aos ares a lua em crescente... branca e medrosa. A atmosfera estremece a umas vibrações quase insensiveis. Dorme o oceano na sonolência da calmaria, e o céu, de uma serenidade tocante, mira-se como que sorrindo nas ondulações demoradas que ora se lhe alteiam no dorso ora baixam, como se sonhasse com tempestades. O luar solta nas águas cobrinhas de prata e do céu algumas estrelas vivazes espiam-nas...

O que é aquele objeto negro que flutua pelas ondas, vagaroso, pesado?... Um féretro a boiar? Não, é um navio. O que leva? A morte? Não, o cativeiro... Ali vai... Esguios sobem os mastros do convés e as velas pendem das vergas em longas dobras, imitando a ramagem chorosa dos ciprestes. Parece uma necrópole... Mas não! Há sombras vagueando... Serão espectros? Não; é uma tripulação. Em tudo a cor dos antros. As velas são negras, negros os mastros, negra a tripulação... O navio negro! No meio do convés há um ponto onde como que se coagulam as trevas. Ponto escuro na escuridão. Rasga-se qual a boca de uma sepultura. É uma escoltilha. Não é a boca de uma cova, porque foi vivo quem passou por ela. É a porta do inferno. Entrando por aí, cai-se na escravidão.

De dentro sai um rumor... Se os cadáveres falassem, falariam assim. O porão ecoa, repercutindo a algazarra lúgubre. São gritos, gemidos, gargalhadas... Um concerto infernal, regido pelo desespero. E tudo nas trevas. A lua quer entrar pela abertura. Os raios se apagam na entrada. O abismo repele a claridade. Esse porão é um abismo. Não pode haver luz no túmulo. Esse porão é um tumulo de vivos. De repente à escoltilha aparece uma coisa. É uma cabeça, são umas espáduas, uns braços... um corpo.

Horrível! Os olhos não tem luz; a cara é preta, desmaiando para amarelo; as comissuras da boca estão arregaçadas; uns dentes brancos, pontudos, entremostram-se cerrados. A boca profere uma blasfêmia tácita: nos lábios a ironia, nos dentes a raiva. O corpo cai para um lado, pesadamente flácido. um dos espectros que vagueavam chega-se. Ri-se. Agarra o cadáver. Ri-se... os punhos estão mordidos, as artérias rotas...



À popa do navio há um rebolíço medonho. Umas formas escamosas, longas, brilham à lua, serpeando num turbilhão de escuma... É a festa dos tubarões. E o navio avança vagaroso, tétrico. Vai para a América. Transporta escravos...Vil barcaça carregando a vergonha de uma ação! Por sobre essa imundície há alguma coisa. Enruga-se. Parece querer fugir ao clarão da lua. Estreita-se. Quer com certeza passar desapercebida... O que é? Vejamos. É um pano sujo? Não; é uma bandeira. O barco representa uma piramide de infâmia. O vértice é a bandeira.

--

Confrange-te, coração patriota, ante esta fotopintura do passado... Aquela bandeira era o emblema predestinado do Brasil. Estranhas oscilações das coisas do mundo! Aquele farrapo, tão pequeno, que abrigava o negreiro, foi depois tão grande que amortalhou falanges de heróis. Dir-se-iam que não tinham fé no futuro os que o emprestaram ao negreiro. Embora. Num emblema não se escarra. Foi o que fizeram.... Profanaram. Os bravos de Riachuelo e Tuiuti tentaram disfarçar a profanação. Moribundos, beijavam a bandeira. Em vão.

Crivaram-na de estrelas, mas a mancha ficou. As estrelas não eliminam a noite. Para um mal como a noite, só um remédio como o sol. Sobre a bandeira nacional está a noite da vergonha: a mancha da profanação. É esta a sua melancolia até nos momentos de júbilo. Quando raiar a aurora da desafronta é que o pendão auri-verde há de expandir-se. Apagai da história o romance lúgubre da escravidão, que lhes ide escrevendo à margem. E apagá-lo-eis, parando porque quem para no atentado está arrependido, e às águas salutares do arrependimento nada resiste.

Raul Pompéia

Ps: Raul Pompéia escreveu este texto aos 17 anos de idade. O seu ponto de vista se solidificaria e não mais mudaria. Tornou-se escravagista obstinado, dos maiores que a campanha do Abolicionismo acolheu.


terça-feira, 23 de janeiro de 2007

 

Raul Pompéia

A Vergonha da Bandeira

À Tona D'Água

Notas

Raul Pompéia (R. de Ávila P.), jornalista, contista, cronista, novelista e romancista, nasceu em Jacuecanga, Angra dos Reis, RJ, em 12 de abril de 1863, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 25 de dezembro de 1895. É o patrono da Cadeira nº 33, por escolha do fundador Domício da Gama.

Era filho de Antônio de Ávila Pompéia, homem de recursos e advogado, e de Rosa Teixeira Pompéia. Transferiu-se cedo, com a família, para a Corte e foi internado no Colégio Abílio, dirigido pelo educador Abílio César Borges, o barão de Macaúbas, estabelecimento de ensino que adquirira grande nomeada. Passando do ambiente familiar austero e fechado para a vida no internato, recebeu Raul Pompéia um choque profundo no contato com estranhos. Logo se distingue como aluno aplicado, com o gosto dos estudos e leituras, bom desenhista e caricaturista, que redigia e ilustrava do próprio punho o jornalzinho O Archote. Em 1879, transferiu-se para o Colégio Pedro II, para fazer os preparatórios, e onde se projetou como orador e publicou o seu primeiro livro, Uma tragédia no Amazonas (1880).

Em 1881 começou o curso de Direito em São Paulo, entrando em contato com o ambiente literário e as idéias reformistas da época. Engajou-se nas campanhas abolicionista e republicana, tanto nas atividades acadêmicas como na imprensa. Tornou-se amigo de Luís Gama, o famoso abolicionista. Escreveu em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, freqüentemente sob o pseudônimo "Rapp", um dentre os muitos que depois adotaria: Pompeu Stell, Um moço do povo, Y, Niomey e Hygdard, R., ?, Lauro, Fabricius, Raul D., Raulino Palma. Ainda em São Paulo publicou, no Jornal do Commercio, as "Canções sem metro", poemas em prosa, parte das quais foi reunida em volume, de edição póstuma. Também, em folhetins da Gazeta de Notícias, publicou a novela As jóias da Coroa.

Reprovado no 3º ano (1883), seguiu com 93 acadêmicos para o Recife e ali concluiu o curso de Direito, mas não exerceu a advocacia. De volta ao Rio de Janeiro, em 1885, dedicou-se ao jornalismo, escrevendo crônicas, folhetins, artigos, contos e participando da vida boêmia das rodas intelectuais. Nos momentos de folga, escreveu O Ateneu, "crônica de saudades", romance de cunho autobiográfico, narrado em primeira pessoa, contando o drama de um menino que, arrancado ao lar, é colocado num internato da época. Publicou-o em 1888, primeiro em folhetins, na Gazeta de Notícias, e, logo a seguir, em livro, que o consagra definitivamente como escritor.

Decretada a abolição, em que se empenhara, passou a dedicar-se à campanha favorável à implantação da República. Em 1889, colaborou em A Rua, de Pardal Mallet, e no Jornal do Commercio. Proclamada a República, foi nomeado professor de mitologia da Escola de Belas Artes e, logo a seguir, diretor da Biblioteca Nacional. No jornalismo, revelou-se um florianista exaltado, em oposição a intelectuais do seu grupo, como Pardal Mallet e Olavo Bilac. Numa das discussões, surgiu um duelo entre Bilac e Pompéia. Combatia o cosmopolitismo, achando que o militarismo, encarnado por Floriano Peixoto, constituía a defesa da pátria em perigo. Referindo-se à luta entre portugueses e ingleses, desenhou uma de suas melhores charges: "O Brasil crucificado entre dois ladrões". Com a morte de Floriano, em 1895, foi demitido da direção da Biblioteca Nacional, acusado de desacatar a pessoa do Presidente no explosivo discurso pronunciado em seu enterro. Rompido com amigos, caluniado em artigo de Luís Murat, sentindo-se desdenhado por toda parte, inclusive dentro do jornal A Notícia, que não publicara o segundo artigo de sua colaboração, pôs fim à vida no dia de Natal de 1895.

A posição de Raul Pompéia na literatura brasileira é controvertida. A princípio a crítica o julgou pertencente ao Naturalismo, mas as qualidades artísticas presentes em sua obra fazem-no aproximar-se do Simbolismo, ficando a sua arte como a expressão típica, na literatura brasileira, do estilo impressionista.

Obras: Uma tragédia no Amazonas, novela (1880); As jóias da coroa, novela (1882); Canções sem metro, poemas em prosa (1883); O Ateneu, romance (1888). A obra completa de Raul Pompéia está reunida em Obras, org. de Afrânio Coutinho, 10 vols. (1981-1984).

Fonte: Casa do Bruxo


 

À Tona D'Água

I

Microscópicos

Há crepúsculos que parecem desmaios. Olha-se para cima e vê-se o firmamento pálido; o Ocidente apresenta a expressão vaga do olhar da criança que se faz mulher e que sofre a transição. Parece que uma nota de espanto percorre a natureza...
Segue-se depois a noite, a escuridão, o desfalecimento da luz.
A alma compreende que a noite é uma ausência. Vai além. Apalpa esta ausência. É deleitoso. Tem-se os olhos abertos e sonha-se. Os espetáculos são panoramas de fumaça; e sempre nessa confusão de escuros e meias-sombras destaca-se um ponto. Quem vê este ponto é o coração.
Perguntem-no aos amantes.
Rosália estava vendo um crepúsculo assim; e esperava ansiosa pela noite... à praia.

II

Resvala a canoa macia como a nuvem à flor do céu... Rosália já está com ele. Só quem os vê é a noite. O remeiro canta distraído uma barcarola por trás do estofo que os encobre.
E vão...

III

Trocam olhares que os prendem como elos de doces cadeias. Apertam-se as mãos e sentem que possuem alguma coisa de comum que lhes circula pelo corpo delisiosamente. Parece-lhes que possuem o mesmo sangue, porque possuem o mesmo fogo, vivificando a dormência que os acalenta. São dois que se amam de um só amor; mas conhecem-no apenas, porque se sabem amantes e o amor exige duplicidade.

IV

A quilha do barquinho rasga sem ruído a toalha alisada do mar, e os gravetos flutuantes vão-lhe ficando na esteira. Por essa hora, vai a emergir no ocaso um estilhaço de lua que dissolve ainda pelas travas uma claridade morta. Rosalia vê à proa do barco uma pequena lâmina. não exprime bem. Os olhos passam pelo objeto e não atentam. Mas a canoa vai e vem...
Rosália foge à casa paterna, nos braços do amante.

V

Pela segunda vez depara com o ferro; mas agora com atenção. Aquele aço não brilha, entretanto cai sobre ele o luar. A jovem estende languidamente a mão e o segura. Violento palpita-lhe o coração.
Pressentimento... Ela fita profundamente o semblante amoroso do companheiro e murmura:
- Sangue?
O mancebo faz um movimento brusco. A canoa estremeceu. O remeiro vai cantando...
O moço que se afastara da jovem, pega-lhe nervosamente nos formosos braços, apenas formados por brandos filós e diz-lhe com os dentes cerrados, fora de si:
- Teu pai vinha matar-te, desgraçada!
E Rosália atira-se sobre ele e solta um grito de furor:
- Assassino, eu te amo!

Comédia, São Paulo, 1881.

Raul Pompéia


 

Raul Pompéia - Notas

Um têrço da felicidade alheia faz-se da nossa desgraça, outro têrço da desgraça dos próprios felizes. existirá efetivamente o último têrço?

Não há imagem que valha se não interpretar um sentimento - como não há período que se salve, se não interpretar uma idéia.

Que importa a inspiração doentia do artista se o resultado é belo? A pérola é a enfermidade de um molusco.

Fausto é um libelo de pessimismo. Goethe o escreveu para mostrar as vaidades do saber humano, desfolhados ao vento com os malmequeres de Margarida. O homem ignora tudo menos o amor.

Há no íntimo de cada espírito um poeta, como há uma bela estátua no âmago de qualquer bloco de mármore. A arte consiste em extrair ao mármore a estátua; ao espírito o poeta.

A arte não desaparecerá nunca: o sexo é o fiador da sua eterna cotação do mundo.

Artisticamente as sátiras dos costumes, as grandes sátiras sociais (Rabellais, Moliére), são imorais porque dão lugar, em última análise, a que se aplaudam os ridículos e vergonhas que as inspiram, sem cuja existência não teriam modelo seus belos quadros.

A vida da espécie não é garantida pelas boas instituições, mas pelos bons amores. As insituições perniciosas se aumentam a mortalidade exacerbam o amor. A idéia da morte é um afrodisíaco poderoso. Observa-se, nas grandes cidades, que as meninas das vizinhanças dos cemitérios são as mais atiradas ao namoro.

ps: Estas notas não foram publicadas em vida do autor. Foram encontradas entre os seus papéis.

Raul Pompéia


sábado, 20 de janeiro de 2007

 

Florbela Espanca

A Anto

A Maior Tortura

A Minha Dor

A Tua Voz na Primavera

Amiga

Anseios

Aos Olhos Dele

Cegueira Bendita

Doce Certeza

Errante

Eu...

Mentiras

Noite Trágica

Ser Poeta

Tortura

Vaidade

Versos

Vulcões

Poetisa portuguesa, natural de Vila Viçosa (Alentejo). Nasceu filha ilegítima de João Maria Espanca e de Antónia da Conceição Lobo, criada de servir (como se dizia na época), que morreu com apenas 36 anos, «de uma doença que ninguém entendeu», mas que veio designada na certidão de óbito como nevrose. Registada como filha de pai incógnito, foi todavia educada pelo pai e pela madrasta, Mariana Espanca, em Vila Viçosa, tal como seu irmão de sangue, Apeles Espanca, nascido em 1897 e registado da mesma maneira. Note-se como curiosidade que o pai, que sempre a acompanhou, só 19 anos após a morte da poetisa, por altura da inauguração do seu busto, em Évora, e por insistência de um grupo de florbelianos, a perfilhou.

Estudou no liceu de Évora, mas só depois do seu casamento (1913) com Alberto Moutinho concluiu, em 1917, a secção de Letras do Curso dos Liceus. Em Outubro desse mesmo ano matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que passou a frequentar. Na capital, contactou com outros poetas da época e com o grupo de mulheres escritoras que então procurava impor-se. Colaborou em jornais e revistas, entre os quais o Portugal Feminino. Em 1919, quando frequentava o terceiro ano de Direito, publicou a sua primeira obra poética, Livro de Mágoas. Em 1921, divorciou-se de Alberto Moutinho, de quem vivia separada havia alguns anos, e voltou a casar, no Porto, com o oficial de artilharia António Guimarães. Nesse ano também o seu pai se divorciou, para casar, no ano seguinte, com Henriqueta Almeida. Em 1923, publicou o Livro de Sóror Saudade. Em 1925, Florbela casou-se, pela terceira vez, com o médico Mário Laje, em Matosinhos.

Os casamentos falhados, assim como as desilusões amorosas, em geral, e a morte do irmão, Apeles Espanca (a quem Florbela estava ligada por fortes laços afectivos), num acidente com o avião que tripulava sobre o rio Tejo, em 1927, marcaram profundamente a sua vida e obra. Em Dezembro de 1930, agravados os problemas de saúde, sobretudo de ordem psicológica, Florbela morreu em Matosinhos, tendo sido apresentada como causa da morte, oficialmente, um «edema pulmonar».

Postumamente foram publicadas as obras Charneca em Flor (1930), Cartas de Florbela Espanca, por Guido Battelli (1930), Juvenília (1930), As Marcas do Destino (1931, contos), Cartas de Florbela Espanca, por Azinhal Botelho e José Emídio Amaro (1949) e Diário do Último Ano Seguido De Um Poema Sem Título, com prefácio de Natália Correia (1981). O livro de contos Dominó Preto ou Dominó Negro, várias vezes anunciado (1931, 1967), seria publicado em 1982.

A poesia de Florbela caracteriza-se pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto, aliados a uma imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo muitas vezes erótico. Simultaneamente, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas, transbordando a convulsão interior da poetisa para a natureza.

Florbela Espanca não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Está mais perto do neo-romantismo e de certos poetas de fim-de-século, portugueses e estrangeiros, que da revolução dos modernistas, a que foi alheia. Pelo carácter confessional, sentimental, da sua poesia, segue a linha de António Nobre, facto reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é, sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Camões.

Poetisa de excessos, cultivou exacerbadamente a paixão, com voz marcadamente feminina (em que alguns críticos encontram dom-joanismo no feminino). A sua poesia, mesmo pecando por vezes por algum convencionalismo, tem suscitado interesse contínuo de leitores e investigadores. É tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da literatura portuguesa do século XX.

Fonte: As Tormentas


sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

 

Anseios

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha que cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais,
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbres o brilho do luar!...

Não 'stendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela,a soluçar...

Florbela Espanca


 

A Anto (António Nobre)

Poeta da saudade ó meu poeta qu'rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o Só pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,

Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bíblia de dor, o teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!

Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração...

Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!


Florbela Espanca


 

Vulcões

Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.

No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro... e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!

No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões...

Assim quando te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!

Florbela Espanca


 

A Maior Tortura

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia...
E não tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite!

E nem flor de lilás tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia!...
A minha pobre Mãe tão branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para gritar num verso a minha Dor!...

Florbela Espanca


 

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

Florbela Espanca


 

Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
é condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca


 

Amiga

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha magoa e dor
O que me importa a mim? O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beijá-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascessemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...

Florbela Espanca


 

A Minha Dor

A Você

A minha dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos tem dobres d'agonia
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro!
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

Florbela Espanca


 

Tortura

Tirar dentro do peito a emoção,
A lúcida verdade, o sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso d'alto pensamento,
E puro como um ritmo d'oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
que dissesse a chorar, isto que sinto!

Florbela Espanca


 

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca


 

A Tua Voz Na Primavera

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
e amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!

Florbela Espanca


 

Versos

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma...

Versos!... Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
eram o seu amor a soluçar
Aos pés de sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também o que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grante amor em que não crês!...

Florbela Espanca


 

Doce Certeza

Por essa vida fora hás de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d'ouro fulgindo em muita boca!

Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d'ouro e risos de mulher,
Muito beijo d'amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim sequer!...

Hás de tecer uns sonhos delicados...
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos!...

Mas nunca encontrarás p'la vida fora,
Amor assim como este que chora
Neste beijo d'amor que são meus versos!...

Florbela Espanca


 

Aos Olhos Dele

Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada

Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
e grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!

Florbela Espanca


 

Mentiras

Tu julgais que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgais que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?

Ai, se o sei, meu amor! eu bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d'amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito...

mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!

Ai quem me dera uma feliz mentira
Que fosse uma verdade para mim!

J. Dantas

Florbela Espanca


 

Cegueira Bendita

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido sem saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago...
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
'Stendendo as asas brancas cor do sono...

Ter dentro d'alma a luz de todo o mundo
E não ver nada neste mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!...

E chamam-nos Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

Florbela Espanca


 

Errante

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...

Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto

Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

Florbela Espanca


 

Noite Trágica

O pavor e a angústia andam dançando...
Um sino grita endechas de poentes...
na meia-noite d'hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!...

Tenho medo da noite!... Padre nosso
Que estáis no céu... O que minh'alma teme!
Tenho medo da noite!... Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!

Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria dor parece...

Ó noite imensa, ó noite do Calvário
leva contigo envolto no sudário
Da tua dor que me não 'squece!

Florbela Espanca


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