sábado, 17 de fevereiro de 2007

 

Fanatismo (Dicionário Filosófico)

I

O fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. João Dias, retirado em Nuremberg, firmemente convicto de que o papa é o Anticristo do Apocalipse e que tem o signo da besta, não era mais que um entusiasta. Bartolomeu Dias, que partiu de Roma para ir assassinar santamente o seu irmão e que efetivamente o matou pelo amor de Deus, foi um dos mais abomináveis fanáticos que em todos os tempos pôde produzir a superstição.

Poliuto, que vai ao templo num dia de solenidade derrubar e destruir as estátuas e os ornamentos, é um fanático menos horrível que do que Dias, mas não menos tolo. Os assassinos do duue Francisco de Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, do rei Henrique III, do rei Henrique IV e de tantos outros foram energúmenos enfermos da mesma raiva de Dias.

O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu, seus concidadãos que não iam à missa.

Há fanáticos de sangue-frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles; e esses juízes são tanto mais culpados, tanto mais merecedores da execração do gênero humano quanto, não estando tomados de um acesso de furor como os Clément, os Chatêl, os Ravaillac, os Gérard, os Damien, parece poderiam ouvir a razão.

II

Quando uma vez o fanatismo tendo gangrenado um cérebro, a doença é quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer se acaloravam cada vez mais; seus olhos encarniçavam-se, seus membros tremiam, o furor desfigurava seus rostos, e teriam morto quem quer que os houvesse contrariado.

Não há outro remédio contra esta doença epidêmica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal. Porque, desde que o mal fez alguns progressos, preciso fugir e esperar que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra as pestes das almas. A religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se em veneno nos cérebros infeccionados. Esses miseráveis tem incessantemente, presente no espírito o exemplo de Aode, que assassina o rei Eglão; de Judite, que corta a cabeça de Heloferne quando deitada com ele; de Samuel, que corta em pedaços o rei Agague. Eles não vêem que esses exemplos respeitáveis para a Antiguidade são abomináveis na época atual; eles baseiam seus furores na mesma religião que os condena.

As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva. É como se lêsseis um aresto do Conselho a um frenético. Essa gente está pesuadida de que o espírito santo que os penetra está acima das leis e de que o seu entusiasmmo é a única lei a que devem obedecer.

Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar?

De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos: assemelham-se a esse Velho da Montanha que fazia - segundo se diz - imbecis gozarem as alegrias do paraíso e que lhes prometia uma eternidade desses prazeres que lhes havia feito provar com a condição de assassinarem todos aqueles que lhes apontasse. Só houve uma religião no mundo que não foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China. As seitas dos filósofos estavam não somente isentas dessa peste como constituíam o remédio para ela, pois o efeito da filosofia é tornar a alma tranquila, e o fanatismo é incompatível com a tranquilidade. Se a nossa santa religião tem sido frequentemente corrompida por esse furor infernal, é à loucura humana que se deve culpar.

Assim, das asas que teve,
Ícaro perverteu o uso;
teve-as para seu bem
e as empregou em seu dano.
(Bertaud, Bispo de Séez)

Voltaire


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

 

O Cacique Ajuricaba


I

Uma linha tênue separa a realidade da fantasia, a história do folclore que, por sua vez, envolve lendas, mitos, tradições, costumes e mistura fatos reais e históricos com acontecimentos e personagens que são frutos da fantasia, a fim de dar explicação a coisas que estão além da compreensão humana.

É sabido que a civilização ocidental não se inspirou apenas na cultura nativa de cada povo, autóctone, escrita, oral ou então representada pelas diversas outras formas artísticas, mas na miscigenação do mundo fabuloso legado pelos gregos, anglo-saxões, africanos, e até orientais. incorporamos tudo isto à nossa cultura, não só os valores materiais, éticos ou teológicos, como os deuses, heróis e vilões mitológicos da civilização ocidental, além de um conjunto de tradições, conhecimentos e crenças expressas na história, no folclore e nas narrativas populares

Antes de abordarmos a lenda deste post, que enfoca o heróico cacique Ajuricaba, uma das figuras mais inportantes da História do Amazonas, vale lembrar que embora o folclore envolva lendas e mitos, como um conjunto de conhecimentos ou crenças populares expressas em narrativas e provérbios, há também diferenças sutis entre si.

II


Ajuricaba foi protagonista de episódios épicos da guerra entre portugueses e indígenas Manáu, aguerrida nação aruaque que criou uma confederação de povos do Rio Negro para resistir por oito anos à ocupação lusitana nesta região. Em 1728, contudo, foi derrotado por uma poderosa força militar, vindo a cair prisioneiro e, quando era transportado para Belém onde seria vendido como escravo, atirou-se agrilhoado às águas da baía do Rio Negro, em frente ao forte de São José da Barra, que deu origem à cidade de Manaus.

Etimologicamente o folclore expressa as tradições (saber popular) de um povo através de um conjunto de contos, canções ou coreografias que representam uma época ou região; enquanto a lenda, que no latim significa legenda (coisas que devem ser lidas), é simplesmente uma narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os personagens e fatos históricos são deformados pela imaginação poular ou pela criação poética. Já o mito (siginifica fábula em grego) é mais específico aos tempos fabulosos ou heróicos, quando seres e fatos imaginários simbolizam forças da natureza, aspectos da vida humana exagerados pela imaginação popular, pela tradição. O mito é também uma narrativa de siginificação simbólica, transmitida de geração em geração, que procura justificar a origem de determinado fenômeno ou episódio, formulandoexplicação da ordem natural e social e de aspectos da condição humana.

Os mitos e lendas abundam no imaginário popular brasileiro, onde os relatos da literatura oral se perpetuam pela palavra falada ou pelas cantorias. São casos (causos, no dialeto rural), lendas, anedotas e mitos de criação coletiva, quer em forma de contos, mitologia ou folclore, como o saci-pererê - curupira - boto - caipora - iara - boitatá - lobisomen - mula-sem-cabeça - negrinho do pastoreio e muitas outras. Entre os seres fantásticos do Norte, por exemplo, estão o amao, andorinha, baíra, caapora, cobra-grande, mãe-do-mato, matintapereira e outras.

III


Sobre Ajuricaba, cujo nome vem das palavras ajuri (ajuntamento) e caba (caba, marimbondo), ou seja, "ajuntamento de cabas", ou melhor, "ninho de cabas", é bom ressaltar que ele é considerado um dos precursores da luta pela liberdade indígena brasileira, que viraram lenda ao lado de Poti, Sepé, Araribóia, Tibiriçá, Viniambebe, Itagibe e Jaguari. Para mensurar a grandeza desse herói amazônico e as circunstâncias que o cercavam na época do levante Manáu, vale ainda fazer cruzamento entre a história, a antropologia e o imaginário que lhe deram destaque no cenário das nativistas.

Ele foi tuxaua e líder de uma das maiores guerras indígenas de resistência na Amazônia, acontecida no século XVIII. Para a historiadora e folclorista Rosane Volpatto, nosso herói "foi um dos chefes indígenas que conseguiram impor-se aos civilizados pelas suas qualidades de bravura, tenacidade e, sobretudo, de inteligência. Após a chegada do homem branco, o povo indígena procurou novas paragens para viver liberto ou teve de se moldar ao cativeiro imposto pelas circunstâncias. As povoações que surgiram logo depois da chegada dos lusos foram, inicialmente, habitadas por silvícolas que, presos ao torrão em que viviam, se transformaram em indivíduos sem vontade, sem razão, sem ideais, verdadeiras feras domesticadas que ao estalar do chicote faziam tudo qeu lhe ordenava o domador".

Na época, uma das principais estratégias dos portugueses para ocupar a Amazônia e dominar as nações indígenas era deslocar as populações nativas para determinadas localidades chamadas "descimentos", onde ficavam confinadas e tornava a catequese mais fácil e propícia para a utilização de sua mão-de-obra (escrava). Esses deslocamentos, contudo, na absoluta maioria das vezes eram compulsórios, contra a vontade dos indígenas, que não aceitavam abandonar seu habitat nem se submeter a trabalhos forçados, inclusive trocar sua fé pela dos cristãos, pregada principalmente pelos religiosos da Companhia de Jesus.

IV



O uso da intimidação compulsória também provocava resposta violenta dos indígenas, em especial dos aguerridos índios Manáu, que habitavam onde hoje fica as cidades de Manaus e Manacapuru, no Amazonas. Ajuricaba, com sua excepcional capacidade de liderança, conseguiu congregar diversas tribos locais para barrar o domínio dos portugueses sobre aquela região. Ele organizou uma rigorosa vigilância que dificultava o acesso dos lusitanos pelos rios e lagos, do baixo rio Negro ao rio Branco, prolongando a guerra por oito anos, quando toda a região foi governada pelo valoroso cacique, exceto Manaus, que ficou sob o poder de soldados portugueses.

As enormes distâncias entre a área do conflito e o centralismo de Lisboa, que controlava o Governo do Grão-Pará, em cuja jurisdição estava a Capitania do Rio Negro, dificultavam respostas imediatas contra o guerreiro Ajuricaba, que soube explorar essa deficiência. mas Belém reagiu e finalmente conseguiu organizar uma grande investida contra a confederação dos índios do rio Negro, incendiando 300 malocas e matando 15 mil nativos, incluíndo velhos, mulheres e crianças, além da capitulação e morte do famoso chefe Manáu (História Geral do Amazonas, p. 41).

O historiador Arthur César Ferreira Reis assim descreve o evento heróico: "A lenda informa que houve choque violento. De parte a parte, muito heroísmo. Os portugueses, à certa altura, depois de batidos em quatro investidas, já principiavam a desanimar, quando alguns soldados, completando o cerco, atacaram o Ajuricaba pela retaguarda, conseguindo vencê-lo. Adianta a lenda que, nessa refrega, perdendo o filho, tão bravo quanto ele, o jovem Cucunaça, lança-se entre os inimigos inflingindo-lhes várias perdas, sendo afinal preso e posto a ferro. Transportado para belém, depois de ser procedida nova devassa, onde se amontoaram várias provas para o líbelo acusatório ao grande guerreiro, em caminho, antes de chegar à embocadura do rio Negro, tentou libertar-se e aos companheiros. Sublevou, mesmo em grilhões, a gentilidade das embarcações, ameaçando seriamente a tropa de Paes do Amaral e Belchior. Dominado o levante, depois de muito sangue vertido, para não se sujeitar às hummilhações do inimigo ufano da vitória, lança-se com outro principal às águas do oceano fluvial que tanto amava, perecendo afogado, com grande satisfação dos conquistadores, livres de vez das preocupações de tê-lo sob a mais rigorosa vigilância até Belém, confessou o governador Maia da Gama (História do Amazonas, p.82)." Acrescenta o historiador que foram levados a ferros para Belém mais de dois mil indígenas, sendo encarcerados ou vendidos como escravos.

V



Em prosa poética, Rosane Volpatto diz que "às vezes, no terreno de aluvião, sujo e lodoso, se encontram ouro e gemas preciosas e, também, em meio ao sofrimento, dor e pavor, surgem gênios, pessoas raras. Aqui em nossa terraexistiu um destes seres iluminados por um espírito guerreiro, que combateu com ardor e muita impetuosidade a hostilidade do pretenso civilizador. Ajuricaba não nasceu para o cativeiro. Nasceu com a mata interminável à sua disposição para nela expandir a sua ânsia de viver livremente".

Mais adiante, a folclorista descreve que, apesar da diferença de armamento, Ajuricaba resistiu dando exemplos seguidos de audácia e valor, quando finalmente caiu lutando, levado prisioneiro para bordo de uma nau lusitana, onde ainda consegue amotinar os presos que a custo foram subjugados. "Como se pudessem algemar a idéia que o dominava, amarram-lhe aos pés pesadas bolas de ferro com grossas correntes. Todavia, como Ajuricaba não nasceu para ser cativo, numa manhã consegue arrastar-se até a borda do navio e, explodindo de alegria, atira-se às águas espelhadas do rio com seus pesados grilhões, libertando-se para sempre... Hoje o povo indígena amazonense ainda aguarda outro libertador que o livre da agonia que o sufoca", finaliza Rosane Volpatto.

O fim de Ajuricaba tem sido cantado em prosa e verso, encenado como ópera nativista na memória do amazônida, nos levando a refletir sobre a história e destino da nossa região, ainda explorada e cativa da cobiça internacional. Antes, o rio Negro foi visitado pelo norte e pelo sul por ávidos europeus, através do Orinoco e do Amazonas, à caça da cidade dourada de Manoa, cenário da lenda criada pela imaginação opulenta dos conquistadores do rico Império Inca. À medida que as explorações avançavam, a conquista da terra se consolidava, malocas inteiras de índios iam sumindo para dar lugar a povoações colonas que surgiam como balizas de futuras invasões "civilizadas". Nada se antepôs á onda branca a não ser as heróicas tentativas de Ajuricaba, que conseguiu unir valentes etnias Aruaques numa confederação indígena do rio Negro para enfrentar em ousada guerrilha o poderio lusitano, pagando esta ousadia com a vida de milhares de guerreiros, velhos, mulheres e crianças. Muitos, contudo, tornavam-se voluntariamente cativos, servindo, às vezes, de guias à caça de seus próprios irmãos.

Fonte: Revista Amazon View

***

Ajuricaba
[Em Prosa Poética - por Rosane Volpatto]



sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

 

Amor-Próprio

Um Mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente.Disse-lhe um transeunte:

- O senhor não tem vergonha de se dedicar a mister do infame, quando podia trabalhar?
- Senhor - respondeu o pedinte - , estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. - E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.

Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.

Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios indianos, que lhe davam algumas moedas do país.

- Que renúncia de si mesmo - dizia um dos espectadores.
- Renúncia de mim mesmo? - retorquiu o faquir. - Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.

Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todas as nossas ações na Índia, na Espanha, como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor-próprio. O amor-próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao intrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos. E cumpre ocultá-lo.

Retirado de Dicionário Filosófico (1764)

Voltaire


 

Voltaire 1694 - 1778

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