I
Microscópicos
Há crepúsculos que parecem desmaios. Olha-se para cima e vê-se o firmamento pálido; o Ocidente apresenta a expressão vaga do olhar da criança que se faz mulher e que sofre a transição. Parece que uma nota de espanto percorre a natureza...
Segue-se depois a noite, a escuridão, o desfalecimento da luz.
A alma compreende que a noite é uma ausência. Vai além. Apalpa esta ausência. É deleitoso. Tem-se os olhos abertos e sonha-se. Os espetáculos são panoramas de fumaça; e sempre nessa confusão de escuros e meias-sombras destaca-se um ponto. Quem vê este ponto é o coração.
Perguntem-no aos amantes.
Rosália estava vendo um crepúsculo assim; e esperava ansiosa pela noite... à praia.
II
Resvala a canoa macia como a nuvem à flor do céu... Rosália já está com ele. Só quem os vê é a noite. O remeiro canta distraído uma barcarola por trás do estofo que os encobre.
E vão...
III
Trocam olhares que os prendem como elos de doces cadeias. Apertam-se as mãos e sentem que possuem alguma coisa de comum que lhes circula pelo corpo delisiosamente. Parece-lhes que possuem o mesmo sangue, porque possuem o mesmo fogo, vivificando a dormência que os acalenta. São dois que se amam de um só amor; mas conhecem-no apenas, porque se sabem amantes e o amor exige duplicidade.
IV
A quilha do barquinho rasga sem ruído a toalha alisada do mar, e os gravetos flutuantes vão-lhe ficando na esteira. Por essa hora, vai a emergir no ocaso um estilhaço de lua que dissolve ainda pelas travas uma claridade morta. Rosalia vê à proa do barco uma pequena lâmina. Vê não exprime bem. Os olhos passam pelo objeto e não atentam. Mas a canoa vai e vem...
Rosália foge à casa paterna, nos braços do amante.
V
Pela segunda vez depara com o ferro; mas agora com atenção. Aquele aço não brilha, entretanto cai sobre ele o luar. A jovem estende languidamente a mão e o segura. Violento palpita-lhe o coração.
Pressentimento... Ela fita profundamente o semblante amoroso do companheiro e murmura:
- Sangue?
O mancebo faz um movimento brusco. A canoa estremeceu. O remeiro vai cantando...
O moço que se afastara da jovem, pega-lhe nervosamente nos formosos braços, apenas formados por brandos filós e diz-lhe com os dentes cerrados, fora de si:
- Teu pai vinha matar-te, desgraçada!
E Rosália atira-se sobre ele e solta um grito de furor:
- Assassino, eu te amo!
Comédia, São Paulo, 1881.
Autores
Especiais
janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 julho 2007 setembro 2007
Assinar Postagens [Atom]