sábado, 24 de março de 2007

 

Fé [ Dicionário Filosófico ]

I

Certo dia, o príncipe Pico della Mirandola encontrou-se com o papa Alexandre VI em casa da cortesã Emília, quando Lucrécia, filha do santo padre, estava em trabalhos de parto e não se sabia, em Roma, se o filho dela era do papa ou de seu filho, o duque de Valentinois, ou do marido de Lucrécia, Afonso de Aragão, que, ao que constava, era impotente.

O diálogo principiou muito animado. O cardeal Bembo narra-nos uma parte da conversa.

- "Pico", perguntou o papa, "julgas quem seja o pai de meu neto?" - "Acho que é vosso genro", respondeu Pico. - "Eh! como podes acreditar numa tamanha idiotice?" - "Creio, porque tenho fé." - "Por acaso ignoras que uma criatura impotente não pode fazer filhos?" - "Consiste a fé." Retorquiu Pico, "em crer nas coisas porque elas são impossiveis. Aliás, a honra da vossa casa exige que o filho de Lucrécia não possa ser o fruto de um incesto. Deverei crer em mistérios mais incompreensiveis do que o que se apresenta. Pois não é forçoso que esteja convencido que uma serpente falou, que desde esse tempo todos os homens ficaram danados, que a burra de Balaão falou também, com grande eloquência, e que as muralhas de Jericó cairam ao soar das trombetas?" Na sequencia, Pico desatou a desfiar todas as coisas portentosas em que era obrigado a acreditar.

Alexandre soltou o corpo num sofá e rebolava-se de tanto rir. - "Acredito em tudo isso quanto vós", dizia, por entre gargalhadas, "porque sinto que só pela fé posso ser salvo e que não o serei jamais pelos meus atos."
- "Ah! santo padre", exclamou Pico, "não tendes necessidade de boas obras nem de fé. Isso só serve para os pobres profanos, como eu. Para vós, que sois uma espécie de vice-deus, vós, sim, podeis acreditar e fazer tudo quanto vos apeteça. Tendes as chaves do céu. Certamente São Pedro não vai dar-vos com a porta na cara. Quanto a mim, porém, confesso-vos que para entrar lá necessitaria de uma poderosa proteção se, sendo apenas um pobre príncipe, tivesse ido para a cama com uma filha minha e tivesse utilizado o estilete e a cantarela tantas vezes como Vossa Santidade dizem que já fez."

Alexandre VI não era desconfiado, nem se ofendia com os gracejos que lhe dirigiam.

- "Falemos a sério", disse para o principe della Mirandola. "Dize-me lá que mérito podemos ter em dizer a Deus que estamos persuadidos de coisas em que, efetivamente, não podemos acreditar? Que prazer pode dar isso a Deus? Cá entre nós, dizer que se acredita naquilo que é impossível de acreditar, é mentir e nada mais."

Pico della Mirandola fez um grande sinal da cruz. - "Homessa! Deus paternal", exclamou, "que Vossa Santidade me perdoe, mas não sois cristão."
- "Assim Deus me salve que não", respondeu o papa.
- "Pois já tinha cá minhas desconfianças", rematou Pico della Mirandola.

(Por um descendente de Rabelais)

II


Que é a fé? Seria acreditarmos naquilo que é evidente? Não! É evidente que há um Ser necessário, eterno, supremo, inteligente. Todavia isso não é artigo de fé, e, sim, de razão. Não tenho mérito nenhum em pensar que este Ser, eterno, infinito, que conheço como a virtude, a própria bondade, queira que eu seja bom e virtuoso. Consiste a fé em acreditarmos, não naquilo que nos parece verdadeiro, mas naquilo que se apresenta como errado e falso ao nosso entendimento. Somente pela fé os asiáticos podem acreditar na viagem que Maomé fez pelos sete planetas, nas encarnações do deus Fô, de Visnu, de Xaca, de Brama, de Samonocodão, etc., etc., etc. Coitados, vêem sua inteligência sob tortura, submetem-na , tremem de analisar os fatos, não querem ser empalados nem assados vivos e gritam: "Creio!"

À fé católica, estamos aqui bem longe de fazer a menor alusão. Porque não somente a veneramos, mas é a nossa. Falaremos apenas da fé embusteira dos outros povos do mundo, dessa fé que não é fé e consiste num palavreado oco.

Usa-se uma fé para as coisas espantosas e outra fé para as coisas contraditórias e impossíveis.

DIz-se que Visnu encarnou quinhentas vezes. Coisa bastante espantosa, mas fisicamente e no final das contas não é impossivel. Eis que se Visnu tem uma alma, pode ter quinhentos corpos para se divertir. Em verdade, o indiano não tem uma fé muito viva. Em seu íntimo não está convencido dessas metamorfoses todas, mas dirá, afinal, ao seu bonzo: "Tenho fé. Se pretendeis que Visnu passou por quinhentas encarnações, o que, para vós, equivale a quinhentas rúpias de rendimento, está dito, é coisa assente. De outro modo, iríeis fazer um aranzel contra mim, iríeis denunciar-me, traríeis a ruína ao meu negócio, se não tivesse fé. Que seja! Tenho fé e tomai lá mais dez rúpias que vos dou". O indiano pode jurar e trejurar a esse bonzo que acredita, sem fazer um falso juramento. Isso porque, apesar de tudo, não lhe demonstrou que Visnu não tenha vindo quinhentas vezes visitar as Índias.

No entanto, se o bonzo lhe exigir que creia numa coisa contraditória, impossível, como, por exemplo: dois e dois são cinco, ou que o mesmo corpo pode estar em mil lugares diferentes, ou que ser e não ser é precisamente a mesma coisa. Assim, se o indiano disse que tem fé, mentiu, e se jura que acredita, comete um perjúrio. Então, diz ao bonzo:

- "Reverendo padre, posso garantir-vos que acredito em todos esses disparates, contanto que vos valham dez mil rúpias de rendimento em vez de quinhentas".
- "Meu filho", responde logo o bonzo, "passa pra cá vinte rúpias e Deus te fará a graça de acreditares em tudo aquilo em que ainda não consegues crer."
- "Como quereis", responde o indiano, "que Deus opere em mim o que ele não pode operar sobre ele mesmo? Impossível é que Deus faça ou acredite em coisas contraditórias. Gostaria de dizer-vos, para vos alegar, que acredito no que é obscuro. Porém não posso dizer-vos que acredito no que é impossível.Deus quer que sejamos virtuosos, mas não que sejamos absurdos. Dez rúpias já vos dei, toma lá mais vinte. Crede em trinta rúpias, sede homem de bem se puderes e não me tortureis mais os miolos com as vossas fantasias."

Voltaire


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