A Vergonha da Bandeira
É noite. Sobe aos ares a lua em crescente... branca e medrosa. A atmosfera estremece a umas vibrações quase insensiveis. Dorme o oceano na sonolência da calmaria, e o céu, de uma serenidade tocante, mira-se como que sorrindo nas ondulações demoradas que ora se lhe alteiam no dorso ora baixam, como se sonhasse com tempestades. O luar solta nas águas cobrinhas de prata e do céu algumas estrelas vivazes espiam-nas...
O que é aquele objeto negro que flutua pelas ondas, vagaroso, pesado?... Um féretro a boiar? Não, é um navio. O que leva? A morte? Não, o cativeiro... Ali vai... Esguios sobem os mastros do convés e as velas pendem das vergas em longas dobras, imitando a ramagem chorosa dos ciprestes. Parece uma necrópole... Mas não! Há sombras vagueando... Serão espectros? Não; é uma tripulação. Em tudo a cor dos antros. As velas são negras, negros os mastros, negra a tripulação... O navio negro! No meio do convés há um ponto onde como que se coagulam as trevas. Ponto escuro na escuridão. Rasga-se qual a boca de uma sepultura. É uma escoltilha. Não é a boca de uma cova, porque foi vivo quem passou por ela. É a porta do inferno. Entrando por aí, cai-se na escravidão.
De dentro sai um rumor... Se os cadáveres falassem, falariam assim. O porão ecoa, repercutindo a algazarra lúgubre. São gritos, gemidos, gargalhadas... Um concerto infernal, regido pelo desespero. E tudo nas trevas. A lua quer entrar pela abertura. Os raios se apagam na entrada. O abismo repele a claridade. Esse porão é um abismo. Não pode haver luz no túmulo. Esse porão é um tumulo de vivos. De repente à escoltilha aparece uma coisa. É uma cabeça, são umas espáduas, uns braços... um corpo.
Horrível! Os olhos não tem luz; a cara é preta, desmaiando para amarelo; as comissuras da boca estão arregaçadas; uns dentes brancos, pontudos, entremostram-se cerrados. A boca profere uma blasfêmia tácita: nos lábios a ironia, nos dentes a raiva. O corpo cai para um lado, pesadamente flácido. um dos espectros que vagueavam chega-se. Ri-se. Agarra o cadáver. Ri-se... os punhos estão mordidos, as artérias rotas...
À popa do navio há um rebolíço medonho. Umas formas escamosas, longas, brilham à lua, serpeando num turbilhão de escuma... É a festa dos tubarões. E o navio avança vagaroso, tétrico. Vai para a América. Transporta escravos...Vil barcaça carregando a vergonha de uma ação! Por sobre essa imundície há alguma coisa. Enruga-se. Parece querer fugir ao clarão da lua. Estreita-se. Quer com certeza passar desapercebida... O que é? Vejamos. É um pano sujo? Não; é uma bandeira. O barco representa uma piramide de infâmia. O vértice é a bandeira.
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Confrange-te, coração patriota, ante esta fotopintura do passado... Aquela bandeira era o emblema predestinado do Brasil. Estranhas oscilações das coisas do mundo! Aquele farrapo, tão pequeno, que abrigava o negreiro, foi depois tão grande que amortalhou falanges de heróis. Dir-se-iam que não tinham fé no futuro os que o emprestaram ao negreiro. Embora. Num emblema não se escarra. Foi o que fizeram.... Profanaram. Os bravos de Riachuelo e Tuiuti tentaram disfarçar a profanação. Moribundos, beijavam a bandeira. Em vão.
Crivaram-na de estrelas, mas a mancha ficou. As estrelas não eliminam a noite. Para um mal como a noite, só um remédio como o sol. Sobre a bandeira nacional está a noite da vergonha: a mancha da profanação. É esta a sua melancolia até nos momentos de júbilo. Quando raiar a aurora da desafronta é que o pendão auri-verde há de expandir-se. Apagai da história o romance lúgubre da escravidão, que lhes ide escrevendo à margem. E apagá-lo-eis, parando porque quem para no atentado está arrependido, e às águas salutares do arrependimento nada resiste.
Ps: Raul Pompéia escreveu este texto aos 17 anos de idade. O seu ponto de vista se solidificaria e não mais mudaria. Tornou-se escravagista obstinado, dos maiores que a campanha do Abolicionismo acolheu.
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